Pesquisadores apontaram que o manejo racional transmite bem-estar e está associado à menor emissão de metano entérico e à maior produtividade das vacas leiteiras.
A preocupação da sociedade em relação ao bem-estar e à forma como os animais de produção são criados e tratados nas fazendas é crescente. O bem-estar é intrínseco ao indivíduo, é algo que não podemos dar a ele, mas podemos oferecer recursos para elevar essa característica no animal. Definido pelos especialistas como “o estado de um organismo nas suas tentativas de se ajustar ao meio”, na prática, podemos pensar em bem-estar animal de forma mais simples, em termos de qualidade de vida do animal e da manutenção do seu equilíbrio interno e com o ambiente em que vive.
Ainda mais importante que a teoria, é o comprometimento dos produtores, técnicos e colaboradores com o fornecimento das condições associadas ao bem-estar dos animais, as quais incluem a alta qualidade em alimentação, higiene, instalações e assistência veterinária, além do manejo racional e da abordagem gentil pelos humanos.
Menos estresse
O bem-estar dos animais também está associado ao temperamento, referente às diferenças individuais de comportamento, ou seja, à forma como cada animal reage às rotinas de manejo e ao ambiente de produção. É possível notar tendências de alguns indivíduos serem mais ou menos agitados, agressivos, ativos, curiosos, medrosos, mansos, dóceis e reativos. De modo geral, os bovinos com maiores níveis de reatividade enfrentam problemas de bem-estar e são mais susceptíveis ao estresse, condição que pode acarretar prejuízos para a saúde e produtividade dos animais.
Além disso, o trabalho com animais mais reativos implica em elevação dos custos associados com: (1) necessidades de mais manejadores bem treinados; (2) riscos com a segurança dos colaboradores; (3) tempo despendido com o manejo dos animais; (4) necessidade de infraestrutura otimizada e que demanda manutenções mais frequentes; (5) lotes de animais mais heterogêneos; (6) perda em produção e qualidade de leite, devido ao estresse durante a ordenha; (7) redução da eficiência na detecção de cio em sistemas nos quais a inseminação artificial é utilizada. Ou seja, temperamentos indesejáveis acarretam danos ao bem-estar do animal e do homem, além de prejuízos econômicos.
É possível reduzir a reatividade dos animais, uma vez que o temperamento possui um componente hereditário, conforme explorado nos programas de melhoramento genético bovino. As condições ambientais também interferem no comportamento das vacas, por isso, o manejo racional deve ser adotado. E, embora a genética infl uencie o temperamento do animal, é possível moldar o fenótipo por meio da manutenção dos ambientes livres de estresse (da ordenha, em especial). Assim, a seleção de vacas mais calmas e a adoção de boas práticas na rotina da atividade favorecem o bem-estar tanto das vacas quanto dos trabalhadores.
As boas práticas requerem qualidade nas interações entre pessoas e animais, com certos níveis de contatos positivos, de forma a reduzir reações de medo dos bovinos e facilitar a ação do homem. Partindo dessa premissa, torna-se cada vez mais comum o treinamento das novilhas para a primeira ordenha, técnica bastante adequada ao rebanho leiteiro brasileiro, composto por cerca de 80% de animais mestiços, principalmente da raça Girolando. Os animais que possuem algum grau de sangue zebuíno são mais adaptados às condições tropicais – clima, alimentação e presença de agentes parasitários, além de atingirem melhores índices produtivos, comparados aos animais de raças europeias criados no Brasil. Porém, os zebuínos apresentam temperamento mais reativo, que pode ser afetado por genética, sexo, sistema de criação, tipo de manejo e experiências prévias.
Mais calma, mais leite
Em experimento conduzido na unidade experimental da Embrapa Gado de Leite (Coronel Pacheco/MG), em parceria com a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), foi realizado o treinamento de 31 novilhas F1 Holandês x Gir, no início do terço final da gestação, aos 30 dias antes da data prevista para o parto [1]. O treinamento consistiu na exposição dos animais a estímulos sensoriais crescentes, principalmente sonoros e táteis relacionados ao ambiente de ordenha. O protocolo do treinamento é descrito no Quadro 1.
As boas práticas devem nortear todas as etapas da criação animal, do nascimento à fase adulta. No caso das vacas leiteiras, as quais mantêm contato frequente com humanos, o manejo racional ou gentil inicia-se na fase pré-parto e estende-se na rotina do período de lactação, com ações positivas, como: (1) conduzir para o local de ordenha com calma, sem bater, correr e gritar; (2) estimular a caminhada, chamando as pelo nome, batendo palmas e assoviando; (3) evitar superlotação da sala de espera; (4) conduzir à contenção da ordenha, chamando-as pelo nome, batendo palmas, sinalizando com gestos suaves, assoviando e tocando levemente a garupa; (5) não forçar a entrada na sala de ordenha, respeitando a ordem definida naturalmente; (6) auxiliar o posicionamento e ativar a estrutura de contenção; (7) ao aproximar ou tocar em uma vaca, chamar pelo nome; (8) encostar a mão na perna ou no úbere, antes de encostar nos tetos; (9) após a ordenha, liberar os animais calmamente.
O temperamento reativo das vacas leiteiras também está associado à produtividade. Nesse mesmo estudo [1], o comportamento dos animais foi avaliado durante o período de lactação, por meio da movimentação dos membros posteriores, registrando-se o número de passos e de coices, em dois momentos da ordenha: durante a higienização dos tetos/teste da caneca de fundo preto e durante a colocação do conjunto de teteiras. As ocorrências de derrubadas das teteiras e as ruminações também foram registradas durante a ordenha. As vacas que deram mais passos, coices ou derrubaram mais vezes as teteiras foram consideradas mais reativas, enquanto as que permaneceram menos agitadas e/ou ruminaram mais vezes, mais calmas.
De acordo com os resultados do estudo, as vacas que deram menos coices e ruminaram mais durante a ordenha, produziram mais leite. Logo, a ocorrência de coices durante a ordenha é indicadora de reatividade, ao passo que a ruminação indica relaxamento, o que sugere que as vacas que ruminam mais apresentam melhores índices de bem-estar no ambiente de produção.
AS VACAS QUE DERAM MENOS COICES E RUMINARAM MAIS DURANTE A ORDENHA, PRODUZIRAM MAIS LEITE
Mais calma, menos metano
Os impactos ambientais associados à atividade pecuária, principalmente as emissões de metano (CH4 ), um dos principais gases do efeito estufa (GEE), também desperta crescente interesse na população. As emissões de CH4 pelos bovinos ganharam ainda mais destaque nas mídias sociais a partir do final de 2021, quando potências mundiais reuniram-se na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), em Glasgow, na Escócia. No encontro, representantes de mais de 100 países, incluindo o Brasil, comprometeram se a reduzir em até 30% as emissões do gás metano, até 2030. Boa parte da redução passa pelo desenvolvimento da pecuária mais sustentável, pautada em medidas que visam a mitigação do metano entérico emitido pelo rebanho nacional, um dos maiores do mundo, com cerca de 224,6 milhões de cabeças, em 2021, de acordo com dados do IBGE.
Para investigar esse assunto, outro estudo foi realizado pelos mesmos pesquisadores [2], os quais demonstraram que o temperamento das 31 vacas leiteiras F1 Holandês x Gir, dessa vez em lactação, também se relacionou com as emissões de CH4. O temperamento das vacas foi avaliado na sala de ordenha e no curral de manejo, onde as vacas foram conduzidas ao tronco de contenção, enquanto era registrado o tempo para cada animal entrar no tronco. As vacas que demoraram mais para entrar demostraram medo; já as que entraram correndo foram consideradas mais reativas. Dentro do tronco, foi avaliado o nível de agitação das vacas, por meio da movimentação do corpo, das orelhas e da cabeça; da respiração tranquila ou audível; do comportamento parado ou da tentativa de saltar. Cada animal recebeu uma nota, sendo que notas mais altas indicavam maior reação. Na sequência, foi registrada a velocidade de saída dos animais do tronco de contenção, sendo que animais mais rápidos foram considerados mais reativos.
A mensuração das emissões de metano entérico foi realizada em câmaras respirométricas (Fotos 5A e 5B), nas quais as vacas permaneciam por 48 horas (só saíam para serem ordenhadas). Por meio da medição da quantidade de gases absorvidos e liberados por cada animal, foi possível estimar as emissões diárias de metano (Figura 1).
Como parte da pesquisa dos parâmetros metabólicos, foram realizados ensaios de digestibilidade, com coletas de amostras de alimento (fornecido e sobras), urina e fezes, para estimar a quantidade de energia consumida, perdida (nas formas de fezes, urina, metano e produção de calor) e retida (ou líquida), destinada à produção de leite (Figura 2). A produção diária de cada vaca foi registrada e a quantidade de metano emitido por litro de leite produzido foi calculada.
Segundo os resultados, as vacas mais agitadas durante a ordenha, as que derrubaram mais vezes o conjunto de teteiras, emitiram 36,77% mais metano entérico por litro de leite e destinaram 25,24% menos energia líquida para a lactação (energia consumida menos a energia gasta para manutenção do animal, nesse caso; Gráfico 1).
O TEMPERAMENTO DAS VACAS LEITEIRAS ESTÁ ASSOCIADO ÀS EMISSÕES DE CH4
O contrário foi verificado nas vacas mais calmas, que ruminaram mais durante a ordenha: emitiram 37,10% menos metano entérico por litro de leite e destinaram 57,93% mais energia líquida para a produção de leite. Logo, foram mais produtivas (Gráfico 2).
O temperamento das vacas no curral de manejo também influenciou as emissões de metano: as vacas que saíram mais rapidamente do tronco de contenção, as mais reativas, tenderam a emitir 14,30% mais metano entérico por litro de leite, bem como as que entraram mais rapidamente no tronco (mais reativas) perderam 13,29% mais energia bruta na forma de metano entérico (Gráfico 3) .
Os pesquisadores, enfim, concluíram que a movimentação e a ruminação das vacas na sala de ordenha, bem como os testes realizados no curral de manejo podem ser úteis para prever animais mais propensos à alta emissão de metano entérico por litro de leite e à baixa produtividade.
O temperamento desejável do gado leiteiro, o alto padrão de bem-estar dos animais e homens envolvidos no sistema, bem como a redução das emissões de gás metano na atividade passam pelo aperfeiçoamento no manejo dos animais.
Em tempos de incorporação do conceito ESG na cadeia leiteira, não poupe atitude enérgica para estabelecer estratégias que transformem positivamente o modelo de produção. Mas, na hora de interagir e conduzir os animais na rotina, keep calm, preserve o bem-estar único, ganhe eficiência produtiva e, é claro, garanta a sustentabilidade do negócio.
REFERÊNCIAS
[1] PEDROZA, M. G. M., CAMPOS, M. M., PEREIRA, L. G. R., MACHADO, F. S., TOMICH, T. R., COSTA, M. J. R. P., SANT ANNA, A. C. Consistency of temperament traits and their relationships with milk yield in lactating primiparous F1 Holstein - Gyr cows. In: Applied Animal Behaviour Science, v. 222, 104881, 2020.*
[2] PEDROZA, M. G. M., CAMPOS, M. M., SACRAMENTO, J. P., PEREIRA, L. G. R., MACHADO, F. S., TOMICH, T. R., COSTA, M. J. R. P., SANT´ANNA, A. C. Are dairy cows with a more reactive temperament less efficient in energetic metabolism and do they produce more enteric methane? In: Animal, v. 15, n. 6, p. 100224, 2021.*
*Os estudos fazem parte da tese de doutorado de Maria Guilhermina Pedroza, aluna do Programa de Pós-graduação em Biodiversidade e Conservação da Natureza da UFJF, sob a orientação da pesquisadora Dra. Mariana Campos (Embrapa) e da professora Dra. Aline Cristina Sant’Anna (UFJF).
MARIANA MAGALHÃES CAMPOS
Pesquisadora Embrapa Gado de Leite.
@mariana_magalhaes_campos
GUILHERMINA PEDROZA
Doutoranda em Biodiversidade e Conservação da Natureza, UFJF.
@mariaguilherminapedroza
ALINE CRISTINA SANT’ANNA
Professora do Departamento de Zoologia do Instituto de Ciências Biológicas, UFJF.
@ac_santanna1
Comments